Hoje, ao passar pelo Chiado, não sei se Pessoa se sentaria a seu lado na esplanada da sua Brasileira. Ou se ainda se reconheceria no Martinho da Arcada. Nem sei mesmo o que pensaria se se visse pintalgado de impropérios, quais heterónimos de uma certa gente de cara tapada. Talvez angustiado, desassossegado, mas sempre poeta, encontrasse refúgio, algures num recanto da sua velha Lisboa.

Nem sei mesmo ao som de que libreto Maria Magdalena terá dado à luz naquele dia de Santo António, 13 de Junho de 1888. A coincidência fez com que o verdadeiro nome do santo, Fernando de Bulhões, servisse de assento de baptismo para o pequeno petiz, acabado de ver a luz do dia naquele Largo de São Carlos, defronte do renascido e belíssimo Teatro, antiga Ópera do Tejo, recuperado após o grande terramoto em terrenos do Conde de Farrobo, a troco de uns lugares de camarote.

Fernando António Nogueira Pessoa por ali ficou pouco tempo, não sem que tivesse assistido de pé, que não lhe abundavam as posses, às óperas italianas que, naquela época e por ali, só de Nápoles ou Milão vinham musas inspiradoras.

Nómada no espírito e nos lugares, percorreu vinte e quatro casas em quarenta e sete anos de vida. Entre a mãe que enviuvou cedo e de novo se aninhou, a tia Anica de várias memórias, a avó Dionísia meio louca e assustadiça de crianças, e as velhas criadas da casa, ficaram-lhe as dúbias relações com o feminino. Que o digam todas as Ophelias.

Em dezoito anos, vê morrer o pai aos cinco, o primeiro irmão aos seis e nascer ainda outros cinco da segunda relação da mãe, dos quais alguns também não resistiriam.

Entre Durban, na África do Sul e Lisboa onde definitivamente se fixou, Pessoa foi sempre um fingidor angustiado. Fingiu ser ele e os outros. Que reinventava, recompunha, mascarava. Foi um saltimbanco da vida, dos amigos, da escrita e de si próprio. Desde sempre e desde cedo. De ‘Chevalier de Pas’, ainda criança, o primeiro de mais de uma centena de heterónimos, ia projectando a sua fértil, quão desconcertante imaginação.

Do incontornável Alberto Caeiro, guardador de todos os rebanhos “…que todos andam a achar e não acham… como um ruído de chocalhos, para além da curva da estrada…”. Ou, de Reis, o Ricardo, médico portuense que nascera para as pequenas-grandes Odes e que Pessoa poupou à morte, deixando a Saramago esse dilema no magistral “Ano da Morte…”, obra sublime onde se cruza o génio e o talento. Ou, ainda, do algarvio Álvaro de Campos, de uma Tavira mourisca, supersticioso até ao tutano, tão isolado da vida, enfiado na poltrona da melancolia.

Pessoa foi, também e sempre, um homem fora do tempo. Que o digam Mário de Sá-Carneiro, seu amigo suicida, Côrte-Rodrigues, seu desabafado confidente, António Botto, seu (des)protegido poeta, ou Almada Negreiros, que insistiu em desenhá-lo como se a ponta do lápis os unisse para todo o sempre. E, também António Ferro, deambulando entre políticas, Santa-Rita Pintor, o poeta da obra ardida, Ângelo de Lima de Rilhafoles ou Amadeo de Souza-Cardoso, outro dos génios prematuramente desaparecidos. Com todos eles privou. Com eles se embrulhou em papel de revista nalgumas das mais importantes e improváveis publicações da época: a Águia, a Athena, a Contemporânea, o Portugal Futurista ou o Orpheu, duro e corrosivo, para uma crítica anquilosada e adormecida.

Se, então, da sua vida pouco se disse, a sua obra fala por si. A que, escrita em inglês, foi posteriormente recuperada. Uma Tabacaria desconcertante. O desassossegado livro de um tal Bernardo Soares que alguém recuperou das trevas. E, entre tantos, tantos papéis, cartas e outros escritos, também uma ‘Mensagem’ para uma posteridade sempre adiada.

imagem: óleo s/ tela de Ana Paula Lopes).

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