Que orelha será mais conhecida se não a de Van Gogh?

O holandês genial, que num assomo de loucura se auto-mutilou, poderia ter arrancado cabelos, mordido a língua, socado a porta? Talvez sim.

Mas foi o acidentado trilho do seu percurso que o terá feito optar pela orelha. Antes surdo, que mudo, continuando com o talento na ponta dos dedos.

Foi ingrata a vida de Vincent, a quem só a morte coroou de glória. É assim a natureza humana.
Nascido numa pequena aldeia holandesa em pleno ambiente de rigor calvinista, após fracassadas experiências como comerciante de arte, pregador leigo (seu pai era pastor protestante) e até trabalhador nas minas de carvão na Bélgica, cedo percebeu que a arte seria o caminho.
Teve em Theo, seu irmão, o apoio. No talento, o seu impulso. E partiu.

Foi com xilogravuras compradas em alfarrabistas de Antuérpia que forrou as paredes do quarto, onde se instalou antes de partir para Paris. Precisava de côr para lhe alegrar a alma.

Ainda nos Países Baixos, os camponeses, tecelões e mineiros saiam-lhe do pincel como que em testemunho pelo que com eles vivera. Mais tarde, já em Paris, o contacto com Toulouse-Lautrec, Gauguin, Emile Bernard e tantos outros, ora o empolgava, ora o desiludia. A arte, já então, era chão que uvas não dava. Aqui se pintava, ali se expunha, mas a sobrevivência era uma miragem.

Veio depois o sul e a explosão da côr em Arles e a ilusão da ‘casa amarela’, onde o sonho de um atelier comum com Gauguin, terminaria da pior maneira: ao trocar o pincel pela navalha de barba e a tela pelo seu corpo, Van Gogh, num rasgo não de génio mas de loucura, acaba cortando a sua própria orelha. Depois de tantas obras primas, uma obra dura.

E agora, aqueles que, ao longo de tantos anos e inúmeras exposições nunca sequer tinham intuído a genialidade de “Camponeses semeando batatas”, “A lotaria”, “Doze girassóis numa jarra”, ou “O café da noite na Place Lamartine”, dificilmente poderiam continuar fazendo ouvidos moucos perante tal tragédia.
Nunca como então, o espírito santo de orelha esteve tão presente.

Os seus últimos anos foram pincelados por um misto de sofrimento e de revolta. Mas nunca deixará de pintar. Foi essa a sua vida. Será, naturalmente, a sua morte.

(passam hoje 130 anos que ‘partiu’)

Adelino Pires I Julho.29.2020

Partilhe nas redes sociais
0

Carrinho