Da tolerância

Passa hoje mais um ano sobre a libertação de Nelson Mandela. Símbolo maior da tolerância, soube ser magnânimo quando seria bem mais fácil apontar o dedo e não perdoar.
Em tempos de clivagens, intolerâncias e desrespeito, curvo-me à memória de Mandela. E da avó Maria. Lembro-me sempre dela, quando se fala de Mandela.

(texto publicado há tempos no Mediotejo e hoje recuperado):

“Mandela e a avó Maria”

“…O meu avô Adelino foi o quarto de oito irmãos nascidos no Codes, Sardoal, e o primeiro a partir para África. Por lá casou com uma mestiça, filha de mãe negra e pai inglês. Maria Smith. Um nome simples, que lhe assentava que nem uma luva. Maria, nome de mulher, e Smith, apelido de colono. Assim como que uma chancela para a posteridade. Lembro-me bem da Avó Maria e guardo dela as melhores memórias. Do afecto pelos seus netos, dos quais eu era o primeiro e, como tal, o mais mimado. Das missangas com que entretinha a sua arte. Da sua cozinha com sabor a África. África dela, África minha… “ (*)

Recordo este pedaço de texto que escrevi há algum tempo. Mandela faria por estes dias cem anos de uma longa vida, sofrida, exemplar. E hoje, ao acordar, recordei-me dela, da minha avó Maria. Aliás, lembro-me sempre dela, quando se fala de Mandela. Rima e não será por acaso. Pressinto que algo os terá unido, apesar da distância. Talvez a alma, sei lá? Talvez a dor lhes doesse da mesma maneira. Ou a dignidade de saber sofrer sem ódio ou sem uma ponta de revolta. De ser superiormente tolerante. De sorrir quando a lágrima escorre.

Bem sei que Mandela, que faria agora o seu século, será dele a maior figura. E que ninguém como ele terá dimensão maior. Porque ninguém, como ele, para saber sofrer e perdoar, sorrindo. E que a avó Maria não teve as grades de Mandela. Nem sequer tantas torturas e humilhações. Mas sei que, quando mais nova, também terá tido a sua parte. Como tanta e tanta gente que durante tanto tempo, manteve aquele olhar doce e sereno, como só ele e a minha avó Maria o poderia manter. Como todos aqueles que resistem, quando uma lágrima furtiva se mistura com um sorriso nos lábios.

A minha avó Maria partiu muito antes de Mandela. Após a prematura morte do meu avô Adelino, regressou de África ainda na década de quarenta, sendo acolhida pela família, vivendo em casa dos filhos, mimando os netos, missangando aqui, estoriando acolá. Mas sempre doce, melancólica, tolerante. Como Mandela, que rima com os olhos dela.

(*) excerto de texto publicado no JT (Jornal Torrejano) e no meu livro “Crónicas com Preguiça”.

imagem: a minha avó Maria

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