Apetecia-me ouvi-lo de novo. Afagando o gato ou o contrário. Para ele, não havia meada que não desfiasse. Pegava-lhe pela ponta, dobava a palavra como que o pensamento ali estivesse na ponta dos dedos, da língua, de tudo.

Admirava-lhe o olhar profundo, meigo e distante, de quem vê para além das nuvens. A roupa discreta e as gravatas dos outros, que não as dele. O tal gato, a barba e o cabelo de neve. O que pensava, o que escrevia, o que dizia. A forma superior como o fazia. A liberdade com que vivia.

Agostinho da Silva era senhor de uma sabedoria despojada. Sem plumas nem lantejoulas. Sem esses nem erres. Voz pausada e suave, sapatos rasos e sóbrios, sem que se pusesse em bicos dos pés para que fosse visto, tal a luminosidade da sua presença. Tudo nele era genuíno e, paradoxalmente, desconcertante.

Estudou e ensinou, escreveu e biografou, viajou e viveu numa certa clausura. Mas sempre liberto das amarras da sua consciência:

“… O Homem precisa de ser livre; as liberdades essenciais são três: de cultura, de organização social, económica. Pela liberdade de cultura, o homem poderá desenvolver ao máximo o seu espírito crítico e criador; ninguém lhe fechará nenhum domínio, ninguém impedirá que transmita aos outros o que tiver aprendido ou pensado…; Pela liberdade de organização social, o homem intervém na sua vida em sociedade… para o bom governante, cada cidadão não é uma cabeça de rebanho; é como que um aluno de uma escola de humanidade;… Pela liberdade económica, o homem assegura o necessário para que o seu espírito se liberte de preocupações materiais e possa dedicar-se ao que existe de mais belo e mais amplo…”

Como seria bom ouvi-lo de novo. Sobre este país de carnavais, festivais e outras coisas que tais. Sobre este país, capaz do melhor e do pior. Da excelência e da indecência. Que nos orgulha e nos envergonha. Que premeia alguns e humilha muitos mais. É que honrar a sua memória exigiria outro paradigma. Bem poderemos continuar a conquistar o ouro aqui ou ali: estrelas Michelin, eurovisão, ou pontapés na bola. Mas quem que se contenta com pão e circo, não pode aspirar a ser poeta.

Haja quem pense e nos faça pensar. Quem reflicta e nos faça parar. Quem nos inspire e nos ilumine. Quem se faça ouvir, baixinho, devagarinho. Haja filósofos. Haja poetas. E haja, sobretudo, cultura.

A Agostinho da Silva devemos isso e muito mais. “As Sete Cartas a um Jovem Filósofo”, os textos na “Seara Nova”, as “Conversas Vadias” e todos os registos que dele ficaram, poderiam e deveriam merecer nesta lufa-lufa mediática, algures por aí, qual gato escondido com o rabo de fora, algum tempinho de atenção. Era o mínimo que se exigia.

Obrigado Mestre. Do pensamento e de uma certa liberdade de vida. E da sabedoria despojada.

(texto escrito no Mediotejo e agora recuperado)

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