Chegou com a chegada do século. Nascido na Terceira, numa das ilhas daquele oásis de mar revolto e nevoeiro cerrado, os Açores foram assim o seu berço. Terão sido também e sempre a sua sombra, mesmo quando a luz doutras paragens o iluminava e ainda o seu aconchego, ao qual foi regressando, sempre que pôde, ao longo da sua escrita.
Escrever sobre Nemésio é assim como que atravessar o canal em dia de tempestade. Uma tarefa arriscada, ao alcance apenas daqueles que com ele privaram ou de conhecedores profundos de si e da sua obra. Não é o meu caso, nem tenho esse arrojo. Mas porque passa mais um ano sobre a sua morte, releio o notável livro “Vitorino Nemésio, sem limite de idade”, do também ilustre açoriano António Valdemar, e por aqui me fico, folheando-o, deleitando-me e percebendo que “o tempo e o lugar” marcaram, decisivamente, toda a sua vida, toda a sua obra.
Ainda nos Açores, desde muito novo despertou para a literatura e o jornalismo, privando com escritores, professores, cónegos até. Aí, com apenas quinze anos, publica o seu primeiro livro, “Canto Matinal”. Um livro precoce, mas que Nemésio mantém na sua tábua bibliográfica, como que a chancelar o poeta que sempre foi.
Mas é a Coimbra e aos seus mestres que deve o seu amadurecimento intelectual. Ao Prof. Joaquim de Carvalho “a disciplina e a curiosidade insaciável na leitura”. A Afonso Duarte “o sopro de autenticidade portuguesa e de humanismo universal”. A Aurélio Quintanilha “um homem universal e um português de lei”, um companheirismo sem par. E a António Sérgio e a uma mão cheia de amigos de quem bebeu e com quem acamaradou, a reflexão e a capacidade de se questionar.
A passagem por França e pela Bélgica durante quatro anos, aporta-lhe o cosmopolitismo. E quando regressa em 1939, ano final da Guerra Civil Espanhola e primeiro da II Grande Guerra, inicia a escrita da sua obra maior, “Mau Tempo no Canal”, publicada em 1944. Até então, já Nemésio havia escrito poesia, ensaio, conto e romance. Havia colaborado em jornais e revistas. Fundado e dirigido a “Revista de Portugal”. Publicado a sua tese de doutoramento, “A Mocidade de Herculano até à Volta do Exílio”.
A propósito dos jornais, confessava Nemésio: “Esse meu tempo de repórter foi rico de experiência, mas algo borrascoso e triste. Os dezoito anos de um moço podem com quase tudo – o desenraizamento, privações, sobressalto, algumas humilhações. A insignificância não perdoa.”
Mas agora, ali estava na sua plenitude. Já Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, voltava o poeta com “Eu, Comovido a Oeste”. E, sobretudo, com essa obra intemporal e um dos mais relevantes livros de toda a literatura portuguesa do séc. XX, “Mau Tempo no Canal”. Romance notável, sobre um conflito social e afectivo entre uma aristocracia que já definhava e a ambição de um certo novo-riquismo. É também um romance de cumplicidades. Da voz narrativa com a personalidade de Margarida, que será quem melhor “…apreende a envolvência insular, os efeitos da atmosfera sobre os nervos, da rotina sobre a ansiedade, o impulso e os limites da evasão…”
Vitorino Nemésio foi ainda um homem de palavra e da palavra. Daí o Prémio Montaigne, em 1974. “…Enfim, velho e gasto, já não aprendo linguagem. Foi, aliás, a fabricá-la que me gastei… tenho de reconhecer que fui um bom operário da fala, oral e escrita… Já agora, morrerei na ilusão de que sou um homem de palavra, sujeito do meu pensamento…”.
Alguns anos antes, “Se bem me lembro…”, num país ainda cinzento, em TVs a preto e branco, entrava-nos pela casa, gesticulando, divagando e opinando sobre o que lhe ia na alma. Ali estava ele, da cátedra para quem o quisesse ouvir. Com os Açores como sombra e aconchego, qual anticiclone das letras e da cultura. E nós, comovidos a oeste.
* (no dia em que passa mais um ano sobre a sua morte – texto escrito há tempos no mediotejo e agora revisto)
adelino cp
20.2.2022
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