Azul, Agustina

Naquele ano de 22 soavam ainda os ecos de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Seide tornava-se Museu. Em Outubro, Vila Meã, perto de Amarante, num quarto azul de um domingo chuvoso como azul haveria de ser a cor da sua escrita, desabrochou Agustina. De um parto sem dores que essas lhe foram de sobra na relação fria com uma mãe distante, preferindo-lhe o irmão, nunca a perdoando por lhe ter usurpado os atributos destinados ao varão.

A Laura, de sangue espanhol e quintas no Douro, para os lados de uma Régua áspera e fria que lhe moldaria o carácter, coubera-lhe em sorte um aventureiro. Sofrera por ele. Artur Bessa, dos Teixeiras da Casa do Paço, habituara-se aos períodos cíclicos de abastança e ruína que Entre Douro e Minho eram comuns nos proprietários rurais. Emigrara novo para o Brasil, regressando qual torna-viagens, a tempo de casar com quem tanto esperara. Assim continuariam pela vida, qual relógio de ponteiros cruzados, que só de tempos a tempos se conseguia acertar.

Ainda criança, Agustina intuía o futuro. Observava e absorvia. As mudanças de casa, de quintas, de ares. A família de ambos os lados, as vinhas e os laranjais negros, o Mosteiro e o avô Lourenço que no testamento a privilegiaria à revelia dos pais. A tia Amélia, a quem seguia os passos pelos campos da feira. Os silêncios de Laura, sua mãe, numa relação na qual nunca se revelaram afectos. Ao pai, a esse, para quem a vida sempre fora um jogo, no sentido literal da vida e do sentir, olhava-o com outra benevolência. Apesar dos excessos. Apesar de tudo. Sabia que a cabeceira da mesa lhe estava destinada. Que só para ele a banheira se enchia. Que saía de noite e chegava de dia. E escutava-o. E sentia-lhe as histórias mirabolantes lá do Brasil.

Desconcertante nos modos e nas profundezas da alma, com o à vontade de Dostoievsky (que admirava) ou de Camilo e Brandão que a inspiraram, Agustina teve na infância a lança e o escudo. A solidão e a melancolia no distanciamento dos outros. A indiferença com que lidava nas situações incomuns. A irreverência. O inconformismo. Confessava-o mais tarde a Régio, seu amigo próximo dos tempos de Esposende ou a Sophia com quem viajou pela Grécia dos deuses.

Entre a aristocracia do Douro e as estadas no Paço, foi bebendo saberes que não vinham nos livros… “ em que altura do ano cantava o rouxinol, quando chilreava a cotovia. Como se fazia o pão ou como se secavam os figos. Como se dava de comer aos porcos. Como nascia um vitelo. Como se pisavam as uvas…”. Alimentou-se de histórias, de lendas e de mitos. E percebeu pela avó Justina, acamada, pálida e enrugada, como os velhos podem morrer devagar, devagarinho, mastigando o tempo.

Depois foi a Póvoa, o Porto, a vida e o resto. Ler “O Poço e a Estrada”* é mergulhar num poço sem fundo do qual só saímos conhecendo-lhe a obra. Porque em Agustina há sempre uma teia entre o real e o imaginário. Onde Amélia, a tia, irmã do pai é também Quina, figura principal de Sibila, e o pai, irmão de Amélia será Salvador de O Mosteiro, ou António, o seu enigmático padrinho, Óscar, em Homens e Mulheres. É neste labirinto de figuras e personagens que se tece a vida e a obra de uma escritora maior.

As histórias são muitas e deliciosas. É perceber porque Agustina foi sempre mais admirada que amada ou, como um dia disse sua filha Mónica, “… achar que a minha mãe não é alguém que se ame.” Ou, que na sua relação com o irmão, porque se sentia gémea de um filho único. Perceber porque, com três anos apenas, resolveu fugir sem que se assustasse, como que antevendo a inocência, a insubmissão ou a liberdade. Ou porque entendeu que para casar devia fazê-lo por anúncio no jornal, em plenos anos quarenta, afrontando costumes, rasgando o conforto, desafiando o futuro: “Jovem Instruida desej. corresp. c/pessoa intelig. e culta”. Assim, sem delongas, Agustina assumia o que queria. Um companheiro para a vida que a percebesse e a deixasse voar por entre o papel e a caneta. Mas culto e inteligente. Encontrou em Alberto Luís essa alma gémea. O “casal Garcia”, como lhe chamou. Viveram setenta anos. Uma vida. Ou duas. Ou tantas quantas Agustina ia escrevendo e Alberto foi coligindo. Casaram. Viveram em Coimbra os primeiros tempos onde, nos jogos florais, então vedados a mulheres, a tímida escritora, concorria com o nome do marido, saindo vencedora. Disso se encontram testemunhos.

Depois, o primeiro livro, o “Mundo Fechado”. Ainda em provas, deu a conhecê-lo aos mestres de então aguardando resposta. Ferreira de Castro logo lhe respondeu, incentivando-a. Aquilino e Torga foram mais comedidos. E de Pascoaes, seu conterrâneo de Amarante, nem uma palavra. Não esperava e confessou-se triste e desiludida. Uns anos depois, no Porto onde já residia, um telefonema inesperado. Maria José Teixeira de Vasconcelos, sobrinha do poeta, confessava-lhe que há três anos conservava uma carta para lhe entregar escrita pelo tio, Teixeira de Pascoaes, que já doente, havia lido o livro, não uma, mas duas vezes.

Nela escrevia: “… trata-se de uma escritora de raça, dotada de excepcionais qualidades visionárias ou dotada de um instinto do real. Sem este instinto há só literatura e mais nada. Se os românticos excederam a realidade, caindo na falsidade, os chamados naturalistas cometeram o pecado contrário, e tornaram-se inferiores à natureza. A autora do Mundo Fechado não praticou esses erros. E, por isso, a felicito com o maior entusiasmo!”. Foi a maior recompensa e incentivo para quem acabara de começar. A partir daí, não mais parou. Veio a Sibila, os prémios, toda a obra e uma longa vida de luzes e sombras.

Agustina nunca se furtou a polémicas. Teve-as quanto baste. Foi uma mulher inteira em tudo o que fez ou o que deixou por fazer. Para alguns, uma privilegiada que nasceu em berço dourado, entre a aristocracia minhota, os vinhedos do Douro e as propriedades rurais de Entre Douro e Minho. Que não conheceu a fome, escassez ou miséria, a guerra ou as privações mais duras por que outros passaram.

Mas Agustina foi muito mais do que isso. Uma mulher controversa, mas sobretudo uma escritora maior. Uma predestinada que fugiu a um destino, escolhendo antes um outro. Poderia ter sido apenas e só aristocrata e burguesa. Acasalar-se entre os seus. Multiplicar o condado. As quintas. As rendas. Regar as heranças a ouro e a prata. Não quis. Decidiu assumir-se. Escrevendo a azul. E apenas com o dom que o seu Deus lhe deu.

  • (“O Poço e a Estrada”, Biografia de Agustina Bessa-Luís, de Isabel Rio Novo)

adelino cp

15.outubro.2022 (no dia do centenário de nascimento de Agustina)

 

Partilhe nas redes sociais
0

Carrinho