(memórias de há 2 anos)
Habituei-me a começar o ano, cumprindo um ritual. À lareira, ouvindo a Orquestra Filarmónica de Viena no seu belíssimo Concerto de Ano Novo. Foi assim que comecei a manhã do primeiro dia do ano. Escrevendo e ouvindo os violinos que nos embalam com Strauss. Dizem que o Danúbio nunca foi azul, ao contrário da música que a muitos nos envolve. Que o Papa falou também nesse dia. Não o ouvi, mas calculo que tenha apelado a que o mundo se tente afinar. Precisamos destes momentos que nos afinem a alma, que nos façam lembrar as coisas boas da vida, que nos falem mais de sol que de chuva, que deixem os maus presságios de lado, que nos deem boa música aos ouvidos. Rituais, dirão alguns. Pois bem. Que assim seja.
No ano do centenário de nascimento de Agustina e Saramago, que se cumpram os rituais, os tais que nas datas especiais nos falam para que não nos esqueçamos. Também eu o fiz. Comecei o ano por escrever sobre eles, num texto noutro lugar (NERVO/13, “Cem anos, talvez os poetas…”). Primeiro as senhoras. Comecei por Agustina, naturalmente. Os seus livros acompanham-me onde quer que esteja. A sua figura onde quer que vá. Devo à Ana Paula Lopes uma das suas melhores aguarelas num rasgo de génio a alguém genial. Salpico a leitura de textos de Agustina. Tropeço nela vezes sem conta. E escrevo-lhe. E escrevo-a. Já aqui o fiz nestas páginas. “… Agustina nunca se furtou a polémicas. Teve-as quanto baste. Foi uma mulher inteira em tudo o que fez ou o que deixou por fazer. Para alguns, uma privilegiada que nasceu em berço dourado, entre a aristocracia minhota, os vinhedos do Douro e as propriedades rurais de Entre Douro e Minho. Que não conheceu a fome, escassez ou miséria, a guerra ou as privações mais duras por que outros passaram. Mas Agustina foi muito mais do que isso. Uma mulher controversa, mas sobretudo uma escritora maior. Uma predestinada que fugiu a um destino, escolhendo antes um outro. Poderia ter sido apenas e só aristocrata e burguesa. Acasalar-se entre os seus. Multiplicar o condado. As quintas. As rendas. Regar as heranças a ouro e a prata. Não quis. Decidiu assumir-se. Escrevendo a azul. E apenas com o dom que o seu Deus lhe deu…”. Talvez a reencontre um dia mais tarde. Agora, não. Vou dar tempo ao tempo. E esperar que Agustina não seja ofuscada pelo ‘ano Saramago’. Não mereceria, nem este teria culpa se tal viesse a acontecer. São ambos grandes. Grandes demais para que se anulem. Mesmo que aristocracia não rime com poesia. Ou também por isso. Agustina e Saramago nascidos no mesmo ano tiveram histórias e percursos diferentes, muito diferentes. E se “… Agustina nunca se furtou a polémicas…”, Saramago, teve-as quanto baste. De ambos muito já foi dito e muito ficará por dizer. Sem ter o conforto nem o aconchego dos vinhedos do Douro, Saramago nasceu “… plantado algures entre o Tejo e o Almonda no tempo das velhas oliveiras antes dos milharais, dos restolhos do trigo já ceifado, do punhado de azeitonas e figos secos no alforge…” Mas ambos são grandes. Grandes demais para que se possam anular. Também por isso comecei o ano a escrever sobre eles. Os dois. Rituais. Os tais das datas especiais.
Entretanto começaram os debates. Apetece-me desabafar que quanto mais debates, mais eu gosto de ti. De ti, minha paixão pela escrita e por esta coisa de andar aos papeis. O alfarrabismo é um mundo e a escrita um sofá. Sento-me. E assim me fico. Levantado do chão.
Adelino Pires
Quase escrita /O Almonda
janeiro.7.22
Partilhe nas redes sociais
0

Carrinho